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Caravana pela Vida – De Copacabana a Copacabana: a aventura que fez história
Em 28, jan 2016 | Em Notícias |
Uma nova história foi escrita quando o pequeno ônibus de placa 2717BPE saiu do Lago Titicaca, na Bolivia, rumo à Praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, naquele fim de maio de 2012. Dentro dele estavam umas 25 pessoas, a maioria integrantes do Teatro Trono – Compa, criado em 1989 na cidade de El Alto. Junto a eles ia o teatro-caminhão da companhia, de onde o grupo apresentaria a obra Até a última gota em algumas cidades do caminho. Além de propor debates e reflexões sobre as mudanças climáticas, a ideia era recolher ao longo do percurso demandas de meninos e meninas para tentar responder a uma questão: Que mundo queremos ter em 20 anos?
A pergunta vinha por causa da Rio+20, a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável que se realizaria no Rio de Janeiro de 20 a 22 de junho, 20 anos depois da histórica Cúpula da Terra no Rio, em 1992. O evento era o destino final da “Caravana pela Vida – De Copacabana a Copacabana”, e ainda que a aventura não fosse tão extraordinária aos olhos dos atores bolivianos, já acostumados a caravanas como aquela, para os brasileiros aquilo parecia algo heroico, mítico, espetacular.
“A Caravana pela Vida foi uma jornada épica, que veio do altiplano boliviano para a Rio+20 afirmando que cultura + natureza = cultura viva”, lembra Alexandre Santini, diretor da Cidadania e da Diversidade Cultural do Ministério da Cultura. “Foi muito forte a chegada deles à Cúpula dos Povos na Rio+20. Nós os recebemos como heróis. Muita gente chorou, muita gente se comoveu com eles”, diz Marcelo das Histórias, gestor do Ponto de Cultura Nina, de Campinas (SP).
Por que uma caravana pela vida
Iván Nogales, o sociólogo boliviano fundador do Teatro Trono e da Comunidade de Produtores em Artes (Compa), conta que desde a criação da Plataforma Puente (em 2010) buscavam-se maneiras de visibilizar a Cultura Viva Comunitária, algo que permitisse impactar o continente na relação com os governos e a sociedade. Houve até uma campanha pelos Pontos de Cultura e muitos propuseram fazer um pequeno festival, uma obra de teatro, etc. O Teatro Trono, como tinha um teatro caminhão, propôs uma caravana. Na verdade, eles tinham pensado em algo maior, “do Oceano Pacífico ao Oceano Atlântico”, mas não tinham dinheiro para isso.
Um dia, um amigo alemão entusiasta da ideia disse a Nogales que poderia conseguir “algum fundo”. “No final, conseguiu bem pouco, mas foi bom”, afirma o diretor boliviano. “Então aproveitei e disse, ‘Companheiros do Brasil, há esta possibilidade, podemos fazer uma caravana de Copacabana a Copacabana. Vamos com o teatro-caminhão, com uma obra de teatro maiúscula, grande, mas que trate de denunciar a venda do planeta com a economia verde na Rio+20.”
E assim começou a jornada que acabou se transformando numa espécie de patrimônio do movimento de Cultura Viva Comunitária. O teatro-caminhão saiu de Copacabana, Bolívia, no dia 26 de maio e chegou a Copacabana, Brasil, em 18 de junho. Antes de chegar ao Rio de Janeiro, passou por La Paz, El Alto, Huanuni, Oruro, Cochabamba, Villa Tunari, Santa Cruz, Puerto Suárez, Corumbá, Campo Grande, Rio Claro, São Paulo e Taubaté. Como não havia muito dinheiro, foram os Pontos de Cultura que os acolheram para dormir e comer e beber, numa espécie de “financiamento complementar”. (*)
De ponto a ponto, aplausos e braços abertos
A viagem foi narrada pela internet. No blog caravanario.wordpress.com, eles contavam o que acontecia no trajeto, as alegrias e os contratempos. Em Villa Tunari, por exemplo, chegaram justo no dia do aniversário do lugar e estava tudo cheio, não havia nem como entrar na praça central onde atuariam. À noite, quando finalmente conseguiram subir ao palco, um grupo começou a tocar. E eles tiveram que gritar muito alto para que a plateia os escutasse. “Fizemos o que podíamos. A obra continuou e, por sorte, nosso público também seguiu conosco.”
O percurso brasileiro, por sua vez, começou “cheio de carinho” em Corumbá (MS), com “corpos intercambiando arte” no Ponto de Cultura Moinho Cultural. Depois veio Campo Grande, onde foram “carinhosamente recebidos por Dudu e Andrea” e tiveram um “reencontro cálido” no mercado central com Célio Turino. “Passamos o resto da tarde com a gente muito aberta e amigável que assiste ao curso de Célio… Eles nos dão as boas-vindas com aplausos calorosos e braços abertos”, escreveram.
A recepção calorosa se repetiu nas cidades seguintes, Presidente Prudente, Rio Claro, São Paulo, Taubaté… até o ponto final, Rio de Janeiro. Marcelo das Histórias, que vinha acompanhando a saga dos bolivianos pelas redes, foi um dos que se comoveram com a chegada deles à Rio+20. “A expectativa era grande e eles chegaram justamente no momento em que começaria a plenária da Cúpula dos Povos. Foi muito emocionante ver os meninos, tão desgastados, começando a montar os banners, com aquele discurso poético, dizendo que cultura + natureza = cultura viva”, afirma o campineiro contador de histórias.
As mensagens de esperança pelo caminho
A pintura e a exposição dos banners estavam entre as atividades lúdicas previstas para a caravana, assim como as apresentações de teatro, os debates e a mostra de curtas que marcaram seu trajeto até o Rio de Janeiro. Até a última gota, a obra central apresentada durante a viagem, tinha a água como fio condutor, como elemento vital, relacionado a diferentes temáticas (mineração, pesticidas, mudanças climáticas, etc).
Com a caravana, o grupo de atores conseguia atravessar fronteiras levando não apenas propostas e demandas de crianças e jovens, mas também mensagens de esperança por um futuro que compete a todos. Rio+20, afinal, era uma oportunidade de olhar para o mundo que queremos ter e debater questões urgentes, como a redução da pobreza, o fomento da equidade social e a proteção do meio ambiente num planeta cada vez mais povoado.
“Seria mais natural, pelo poder aquisitivo, ver uma caravana brasileira fazendo isso. E a iniciativa veio da Bolívia, um dos países mais pobres (economicamente) da América Latina”, comenta Marcelo das Histórias. “Isso foi um fator crucial para a decisão de fazer na Bolívia o primeiro Congresso Latino-americano de Cultura Viva Comunitária. Aquela noite fomos à Lapa comemorar a chegada deles e o assunto vinha a todo momento, a bravura deles, o esforço que fizeram para chegar. Ali tivemos a ideia de fazer o caminho de volta: se os bolivianos mobilizaram uma caravana para vir ao Brasil, todos os países iam se mobilizar em caravanas para fazer o primeiro congresso na Bolívia. Ali organizamos a Caravana por La Paz”.
A caravana como expressão da vida
Iván Nogales sorri quando se lembra da reação dos brasileiros ao ver o grupo de atores chegando à conferência global do meio ambiente, com seus desenhos e mensagens em defesa de um futuro que pode ocorrer já (act now, “atue agora” era a frase formada pelos banners quando montados). “Foi surpreendente porque para nós (uma caravana) é um pouco cotidiano, algo que fazemos com frequência. No entanto, para os brasileiros pareceu uma ação muito heroica”, confirma Nogales.
“Isso marcou um rito, um acontecimento que acredito que agora se transformou em uma espécie de mito porque conseguiu o que não esperávamos, que uma ação visibilizasse e impactasse, enamorasse a sociedade, os governos, todas as instâncias (…) Daí em diante, as pessoas começam a ter maior respeito porque a Cultura Viva Comunitária é capaz desse tipo de acontecimentos, que vão quebrar a cotidianidade, vão marcar um outro rumo, uma outra forma de relacionamento através de impactos que rompem o ordinário da nossa vida, a forma de incidir no espaço público”.
Segundo Nogales, uma caravana atravessando fronteiras, aproximando uns aos outros, “nessa busca do encontro em direção ao outro”, gera (em todos os sentidos) uma mobilidade, um fluxo, uma potenciação do intercultural, intergeneracional. Mostra que os sonhos não são remotos, “e sim estão presentes e estão aqui”, porque a Cultura Viva Comunitária é também o bairro, e a partir do pequeno é possível acontecimentos de impacto continental.
“A Caravana pela Vida é como uma pegada da Cultura Viva Comunitária que, no fundo, explicita a cultura como fluxos migratórios contínuos e permanentes de aproximação dos povos”, acredita Nogales. “A arte através da caravana, a única coisa que faz é explicitar isso que os povos são permanentemente: caravanas. As culturas são caravanas sempre. Por isso, as nossas caravanas culturais nada mais fazem que deixar claro que a caravana da vida está permanentemente em todo o planeta.”
A descolonização do corpo e o sonho de outra vida
Iván Nogales Bazan trabalha com arte comunitária e educação desde 1980. Sob sua direção nasceu em 1989 o Teatro Trono – Compa e, com ele, toda uma tecnologia que tem a ver com caravanas. “Fomos fundadores da kinder kultur karawane, a caravana cultural das crianças, que circula na Europa há 18 anos”, conta. Nessas caravanas, que duram quase três meses, de 6 a 8 grupos circulam por ano na Alemanha e em grande parte da Europa até parte da África e da América Latina.
Resultado do trabalho do Teatro Trono – o grupo de teatro independente que começou com meninos de rua em um centro de reabilitação há 26 anos –, a Fundação Comunidade de Produtores em Artes (Compa) já realizou mais de 40 excursões internacionais. Ainda que desenvolva suas atividades principalmente em El Alto, cidade da área metropolitana de La Paz onde abriu quatro centros culturais, a organização tem sedes em Cochabamba e Santa Cruz. Em 2010 também ganhou uma sucursal na Europa: a Compa Berlín.
A principal metodologia da Compa se denomina “descolonização do corpo” (“arte que se faz abraço”). Como eles explicam no site www.fundacioncompa.com, “é uma proposta que pretende mudar a lógica de aprendizagem, passando de um processo meramente intelectual a um processo vivencial, criativo, emotivo, envolvendo todo o potencial corporal”. Colonização, dizem, é “o domínio, a imposição, a submissão de um sobre outro/a ou outros/as”. Ou seja, de uma forma de pensar sobre outra, de entender e sentir o corpo sobre outra. Descolonização, portanto, seria “o processo de liberação da estrutura colonial interna como indivíduos e coletivos, base para projetar utopias”.
Com vistas a experimentar de forma permanente suas metodologias alternativas de arte e educação, o grupo vem construindo pouco a pouco seu projeto mais ambicioso: o Pueblo de Creadores. O espaço já existe: um terreno de três hectares adquirido na comunidade de Santa Gertrudis, em Nor Yungas. No povoado vizinho, Mururata, de população predominantemente afro e cultura aymara muito presente, a Compa vem criando espaços de diálogo, aproximação e construção de comunidade por meio da arte, com oficinas de teatro, música, rádio, vídeo e outras ações para o resgate da memória e o fortalecimento dos saberes locais.
Nesta comunidade onde tentam construir o sonho coletivo de descolonização, eles pretendem se inspirar nos saberes indígenas para recuperar seu legado de convivência harmoniosa com a natureza e mostrar, assim como fizeram poeticamente na Rio+20, sua equação mais básica: a que ensina que cultura + natureza = cultura viva.
(*Texto publicado em 28 de janeiro de 2016)
Assista aos vídeos sobre a Caravana pela Vida:
https://www.youtube.com/watch?v=jv34hlnGbvM
https://www.youtube.com/watch?v=wGF12nloSes
https://www.youtube.com/watch?v=Bs4zdPGsdzA (trailer)
https://www.youtube.com/watch?v=zOWchkZqkc8L (spot)
Saiba mais:
www.facebook.com/CaravanaPorLaVida